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A anatomia do silêncio: como as corujas voam sem serem ouvidas?


As corujas são conhecidas por serem predadoras mortais e muito habilidosas, com a capacidade de realizar voos surpreendentemente silenciosos, quando em comparação com outras aves. Essas características, não somente permitem uma abordagem furtiva em relação à presa, mas também preserva a acuidade auditiva necessária para a detecção de sons gerados por pequenos animais no ambiente, atributos especialmente relevantes para espécies que caçam no escuro. (SAGAR, 2017).

A capacidade de voo silencioso pode variar entre as espécies de corujas. Espécies maiores, como o corujão-orelhudo (Bubo virginianus), tendem a utilizar uma estratégia de voo planado durante a aproximação final de suas presas, geralmente pequenos mamíferos, o que exige um nível elevado de silêncio tanto para manter a furtividade quanto para preservar sua sensibilidade auditiva, essencial para o rastreamento acústico. Em contrapartida, corujas de menor porte, como as corujas-buraqueiras (Athene cunicularia), que frequentemente se alimentam de insetos, costumam adotar estratégias de ataque rápido, como o pouso em queda ou a captura em voo, contextos nos quais o silêncio absoluto pode ter menor relevância ecológica (PAYNE, 1962; JOHNSGARD, 2002).

​Há cerca de 80 anos, diversos estudos têm buscado responder à uma pergunta: Quais são as adaptações morfológicas únicas presentes nas asas das corujas? De acordo com Graham (1934), a configuração das penas das corujas apresenta três características principais: uma fileira de estruturas semelhantes aos dentes de um pente na margem cranialdas asas (conhecida como leading-edge comb), uma franja flexível na margem caudal (trailing-edge fringe) e uma superfície dorsaldas penas com textura aveludada, semelhante a penugem, que atua na dispersão sonora. Esses elementos, em conjunto, reduzem a turbulência aerodinâmica durante o voo e atenuam a propagação do som, conferindo à ave uma notável furtividade ao se aproximar das presas.


 

Legenda. Principais características das asas da coruja: (a) franjas na borda traseira da asa, (b) superfície aveludada na parte inferior e central da asa, e (c) estrutura em forma de pente na borda dianteira. Créditos: SAGAR, 2017.


Legenda. Fase de planar da coruja-das-torres (Tyto alba), seguida por (b) abertura das asas e movimento de ataque com as garras. (c) Detalhes físicos nas bordas das asas e na superfície superior das asas, que são foco de estudos para entender o voo silencioso das corujas. Créditos: JAWSORSKI, J. W.; PEAKE, N., 2020.

Estrutura serrilhada da margem cranial da asa (Leading-edge comb):

Quando o ar atinge a parte frontal da asa — chamada de borda de ataque — ele normalmente acompanha o formato aerodinâmico da asa, como acontece com outras aves ou aviões. No entanto, uma parte desse ar pode se acumular ao longo da superfície da asa enquanto se desloca em direção à extremidade. Esse acúmulo cria turbulência e redemoinhos de ar (conhecidos como vórtices), o que gera vibrações e ruídos. Nas corujas, essa borda de ataque apresenta uma estrutura especial: uma série de pequenas projeções serrilhadas, semelhantes a um pente, adaptação que impede o acúmulo de ar, fragmentando o fluxo em pequenas correntes e reduzindo a formação de vórtices. Como resultado, o voo da coruja se torna muito mais silencioso, mesmo durante o bater das asas (GRAHAM, 1934).


Legenda. Fotografia de uma asa preparada para os experimentos. (a) Asa completa, (b) ganchos da borda de ataque, (c) imagem ao microscópio (ampliação 4×) dos ganchos da asa. Créditos:GEYER, 2017.

Franja flexível na margem caudal (Trailing-edge fringe):

As penas das corujas possuem uma margem caudal (ou de fuga) franjada, diferente da borda lisa observada em outras aves. Essas franjas surgem porque, nessa região, as pequenas estruturas que normalmente mantêm as bárbulas unidas (hooklets) estão ausentes. Isso resulta em extremidades soltas e irregulares. As franjas variam de 1 a 4,5 mm de comprimento, sendo maiores na base da pena e menores na ponta e sua densidade também diminui ao longo da pena, de cerca de 5 para 2 franjas por milímetro (GRAHAM, 1934).

Essas estruturas cumprem duas funções fundamentais no voo silencioso das corujas. A primeira é a unificação das penas: as franjas presentes nas bordas das penas primárias se encaixam nas penas adjacentes, formando uma borda de fuga contínua, fator que reduz o número de descontinuidades aerodinâmicas nas asas, diminuindo as fontes de geração de ruído. A segunda função é a atenuação sonora: a presença das franjas modifica o fluxo de ar ao longo das asas, dispersando as ondas sonoras e reduzindo significativamente o ruído gerado durante o voo — com reduções que podem alcançar até 10 decibéis, dependendo das condições e do ângulo.

 

Superfície dorsal das penas com textura aveludada (Downy Wing Surface):

As asas das corujas possuem uma superfície aveludada formada por estruturas finas chamadas pênulas, localizadas na extremidade distal das bárbulas das penas. Essas pênulastornam a superfície da asa macia e porosa, podendo se sobrepor a outras bárbulas, criando um efeito semelhante a um veludo. Estudos mostraram que essa estrutura ajuda a suavizar o fluxo de ar, reduzindo a separação da camada de ar na superfície da asa e, com isso, diminuindo a geração de ruído durante o voo.

Apesar desses benefícios aparentes, ainda existem dúvidas sobre a função evolutiva dessa estrutura, pois nem todas as aves noturnas ou corujas apresentam pênulas alongadas. Algumas espécies diurnas, por exemplo, têm essas estruturas pouco desenvolvidas, o que sugere que outros fatores, como tipo de presa ou estratégia de caça, também influenciem sua presença.

 

Legenda. Morfologia da superfície aveludada. (a) Imagem de MEV da superfície aveludada na asa de uma coruja-das-torres (Tyto alba). Vista de cima. (b) Imagem de MEV em maior resolução mostrando a sobreposição dos radiados de várias barbas. Vista de baixo. (c) Vista lateral da superfície aveludada com indicação dos parâmetros de espessura e angulação.  Barras de escala: (a) 1 mm, (b) 200 µm e (c) 100 µm.. Créditos:WAGNER, H. et al., 2017.


Legenda. Coruja da espécie Strix sp. varia em voo, destacando A) pente na borda de ataque, B) franjas nas barbatanas e C) superfície aveludada dorsal. Créditos: : CLARK, C. J.; LEPIANE, K.; LIU, L., 2020.

Os estudos com o voo silencioso das corujas têm importância crescente não apenas para a biologia e ecologia, mas também para a engenharia. Ao entender os mecanismos físicos e morfológicos que permitem essa supressão sonora, pesquisadores têm desenvolvido tecnologias bioinspiradas, como asas de drones e turbinas eólicas mais silenciosas, contribuindo para inovações em diversas áreas que buscam minimizar o impacto acústico sem comprometer o desempenho (JAWORSKI; PEAKE, 2020; SAGAR, 2017).

Portanto, a investigação do voo silencioso das corujas representa um elo entre biologia evolutiva e aplicações tecnológicas, revelando como soluções refinadas pela natureza podem inspirar novas formas de convivência harmônica entre desempenho e discrição sonora.

 

 

Autor/a: Fernanda Vitória Marinho - Representante Regional Centro-Oeste do GEAS Brasil

Revisão: Iago Junqueira  - Parceiro do GEAS BRASIL pela The Wild Place

Painel Selvagem de Junho/2025

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CLARK, C. J.; LEPIANE, K.; LIU, L. Evolution and ecology of silent flight in owls and other flying vertebrates. Integrative Organismal Biology, v. 2, n. 1, p. 1–32, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1093/iob/obaa001.

GEYER, T. F.; CLAUS, V. T.; SARRADJ, E. Silent owl flight: the effect of the leading edge comb. International Journal of Aeroacoustics, v. 16, n. 3, p. 115–134, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1475472X17706131.

JAWORSKI, J. W.; PEAKE, N. Aeroacoustics of silent owl flight. Annual Review of Fluid Mechanics, v. 52, p. 395–420, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1146/annurev-fluid-010518-040436.

JOHNSGARD, P. A. North American owls: biology and natural history. 1. ed. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press, 1988.

NORBERG, R. Å. Hunting technique of Tengmalm's Owl Aegolius funereus (L.). Ornis Scandinavica, v. 1, p. 51–64, 1970. Disponível em: https://doi.org/10.2307/3676334.

PAYNE, R. S. How the barn owl locates prey by hearing. Annual Cornell Lab of Ornithology, v. 1, p. 151–159, 1962.

SAGAR, P.; TEOTIA, P.; SAHLOT, A. D.; THAKUR, H.C.An analysis of silent flight of owl. Materials Today: Proceedings, v. 4, n. 8, p. 8571–8575, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.matpr.2017.07.204.

WAGNER, H.; WEGER, M.; KLAAS, M.; SCHRÖDER, W. Features of owl wings that promote silent flight. Interface Focus, v. 7, n. 1, 20160078, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rsfs.2016.0078

 


 
 
 

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