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A história de Pequi: Um enredo de superação, resiliência e ressignificado.


O maior canídeo da américa do sul, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), é um animal típico do Cerrado que pode também ser encontrado nos Pampas, Chaco, áreas de transição com a Caatinga, na porção leste do Pantanal e nos campos gerais do sul do país, apesar de estudos indicarem a recente expansão de seu território para áreas que eram até então reconhecidas como limitantes para sua ocorrência, como o Bioma Amazônico (CHEIDA et al. 2006; QUEIROLO et al. 2011; RAMOS et. al. 2018; SILVA-DIOGO et al. 2020). A espécie desempenha papel vital nos ecossistemas, com sua dieta onívora, o lobo-guará atua como dispersor de sementes e controlando populações de pequenos vertebrados, além disso seus representantes apresentam uma grande capacidade de deslocamento e uma ampla área de habitação (BUENO & MOTTA-JÚNIOR, 2004; CHEIDA et al. 2006; JÁCOMO et al. 2009; PAULA et al. 2013). 


O lobo-guará é listado globalmente como quase ameaçado pela Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN, e suas populações estão em crescente declínio devido a fatores como atropelamento de fauna, perda de habitats naturais e agentes patogênicos oriundos de animais domésticos (WHITEMAN et al. 2007; QUEIROLO et al. 2011; PAULA et al. 2013). Paula et al. (2013) elaborou um modelo de viabilidade populacional (VORTEX) levando em consideração parâmetros biológicos e demográficos, e assim constatou que a espécie deveria sofrer uma redução populacional, de pelo menos, 29% nos próximos 21 anos (3 gerações), a partir do ano do estudo. 

Frente às ameaças e ao crescente declínio da espécie, pesquisadores que participam do Plano de Ação Nacional para Conservação de Canídeos estabeleceram como ação necessária para a conservação do lobo-guará, a criação de protocolos para reabilitação e soltura de filhotes resgatados. A partir disso, instituições zoológicas e ONGs que trabalham com a conservação de fauna têm unido esforços para evitar a extinção do lobo-guará, e assim foi o caso da Pequi, uma fêmea de lobo-guará resgatada ainda filhote junto aos seus quatro irmãos. Após o óbito de sua mãe, os cinco filhotes foram encontrados pela equipe do Onçafari, uma ONG que trabalha em prol da conservação da biodiversidade brasileira. 


Após o resgate, houve uma mobilização do Centro Nacional para Pesquisa e Conservação de Carnívoros (CENAP/ICMBio), e os animais foram então resgatados, cuidados e encaminhados para a Fundação Jardim Zoológico de Brasília, onde passaram os primeiros meses, em constante atendimento clínico e manejo nutricional, visando garantir que os filhotes se desenvolvessem adequadamente. Após alguns meses de cuidados, os cinco filhotes haviam sobrevivido e se desenvolvido, o que dificilmente ocorreria em vida livre, e por esse motivo a soltura destes animais foi feita em locais diferentes. Surgiram então três projetos, um coordenado pela equipe do Onçafari na região de Trijunção, outro pela equipe do Parque Vida Cerrado, no Oeste da Bahia, e um no Distrito Federal coordenado pela ONG Jaguaracambé, uma organização não governamental que trabalha em diversas frentes de conservação no Cerrado. 

 

Legenda. Fotografia da fêmea de lobo-guará, Pequi ainda filhote, enquanto estava sob cuidados da Fundação Jardim Zoológico de Brasília. Créditos: Marcella Lasneaux. 

A loba Pequi foi designada aos cuidados da Jaguaracambé, que procedeu com o trabalho de ambientação e a adaptação para sua posterior soltura. Foi construído um recinto de reabilitação dentro da área de Cerrado onde aconteceria a soltura futuramente, na Área de Proteção Ambiental (APA) da Cafuringa no Distrito Federal, onde Pequi viveu por 14 meses, e foi habituada a alimentação local, estimulada a expressar comportamentos naturais e inclusive teve contato com outros lobos-guará de vida livre da região, que eventualmente se aproximavam do recinto. O comportamento de Pequi foi monitorado pela ONG através de câmeras para reduzir o contato com humanos o máximo possível, e a partir desse monitoramento foi feita a avaliação das condições do animal para a soltura, sendo observados a habilidade de caça, o consumo de frutos nativos do Cerrado, a redução do imprinting com humanos e a expressão de comportamentos naturais da espécie.  

Após a verificação das condições de soltura e a consideração de que o animal já estava apto a retornar a natureza, a instituição educacional estadunidense Smithsonian realizou para a ONG Jaguaracambé a doação de um colar GPS que foi utilizado no monitoramento da Pequi após sua soltura. O colar foi instalado cerca de trinta dias antes da soltura e, durante esse processo, a Jaguaracambé realizou também o monitoramento do estado sanitário dos carnívoros da região e desenvolveu atividades de educação ambiental visando explicar o projeto e a importância da conservação do lobo-guará para a população local. Após o alinhamento de todos os fatores, a soltura da Pequi foi realizada no dia 17 de abril de 2023, de forma branda a partir da abertura do recinto e o aguardo da saída do animal por livre e espontânea vontade. 

 

Legenda. Momento da soltura da Pequi, e sua saída do recinto Créditos: Catarina Tokatjian. 

 

Posteriormente à sua soltura, Pequi foi monitorada através de colar GPS e visualizações presenciais periódicas através de rastreamento por telemetria. Durante oito meses os esforços e registros da ONG indicavam que Pequi havia se adaptado muito bem à vida livre, tendo ganhado 2kg de massa após a soltura, e estava explorando a vastidão de seu habitat como registrado através de seus dados GPS. No entanto, infelizmente Pequi não estava livre das dificuldades que assolam a espécie, como os fatores supracitados responsáveis pelo declínio das populações de lobo-guará em todo o país, como o atropelamento de fauna por exemplo. No dia 14/12/2023, Pequi foi vítima de atropelamento na rodovia BR-080 e infelizmente veio a óbito. Frente a este trágico desfecho, a ONG Jaguaracambé não deu pôr fim a história de vida deste animal que havia cativado a tantos, e a partir deste triste enredo foi decidido ressignificar essa história e torná-la ponto de partida para projetos mais eficazes de mitigação de atropelamentos de fauna e conscientização populacional. 


Pequi se tornou embaixadora e patrona de diversas ideias e projetos que visam a conservação de fauna do Cerrado, como por exemplo a sua participação no filme “Thiago e Ísis e os biomas do Brasil”, um filme destinado a conscientização de crianças sobre a importância de se preservar os biomas do país, Pequi também protagoniza o livro infantil “Pequi e o Cerrado Voador”, um livro que aborda diversas curiosidades e características do bioma Cerrado, compondo uma interessantíssima ferramenta de educação ambiental. A Jaguaracambé também passou a atuar em prol de políticas públicas eficazes, como o monitoramento de rodovias e implementação de passagens de fauna, tendo promovido uma audiência pública no plenário da Câmara Legislativa do Distrito Federal onde foi discutida a obrigatoriedade da implementação de passagens de fauna em rodovias, o monitoramento e estratégias de conscientização para a mitigação de atropelamento de fauna. A história de Pequi é apenas uma dentre tantas outras que se desfecham tragicamente em rodovias por todo o país, por isso é importante usá-la para evitar perdas futuras e reduzir ao máximo possível o declínio das populações de lobo-guará e tantas outras espécies silvestres. 



Autor/a: Arthur Freitas Silva dos Santos - Diretor de Linguagens e Acessibilidade do GEAS Brasil

Revisão: Iago Junqueira  - Parceiro do GEAS BRASIL pela The Wild Place

Painel Selvagem de Outubro/2025


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  • BUENO, A. A.; MOTTA-JUNIOR, J. C. Food habits of two syntopic canids, the maned wolf (Chrysocyon brachyurus) and the crab-eating fox (Cerdocyon thous), in southeastern Brazil. Revista Chilena de Historia Natural, v. 77, n. 1, p. 5–14, 2004.

  • CHEIDA, C. C.; NAKANO-OLIVEIRA, R.; FUSCO-COSTA, R.; ROCHA-MENDES, F.; QUADROS, J. Ordem Carnivora. In: REIS, N. R.; PERACCHI, A. L.; PEDRO, W. A.; LIMA, I. P. (org.). Mamíferos do Brasil. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2006. p. 231–275.

  • JÁCOMO, A. T. A.; KASHIVAKURA, C. K.; FERRO, C.; FURTADO, M. M.; ASTETE, S. P.; TÔRRES, N. M.; SOLLMANN, R.; SILVEIRA, L. Home range and spatial organization of maned wolves in the Brazilian grasslands. Journal of Mammalogy, v. 90, n. 1, p. 150–157, 2009.

  • PAULA, R. C. de; RODRIGUES, F. H. G.; QUEIROLO, D.; JORGE, R. P. S.; LEMOS, F. G.; RODRIGUES, L. A. Chrysocyon brachyurus (Illiger, 1815) no Brasil. Biodiversidade Brasileira, v. 3, n. 1, p. 146-159, 2013.

  • QUEIROLO, D.; MOREIRA, J. R.; SOLER, L.; EMMONS, L. H.; RODRIGUES, F. H. G.; PAUTASSO, A. S. A.; CARTES, J. L.; SALVATORI, V. Historical and current range of the Near Threatened maned wolf Chrysocyon brachyurus in South America. Oryx, v. 45, n. 2, p. 296–303, 2011.

  • RAMOS, D.; SILVA, D.; PASCARELLI, B. O papel da substituição do cerrado por áreas de agropecuária e a extinção do lobo guará. Semioses: Inovação, Desenvolvimento e Sustentabilidade, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 97-111, abr./jun. 2018.

  • SILVA-DIOGO, O., GOEBEL, L. G. A., SOUSA, M. R. D., GUSMÃO, A. C., COSTA, T. M. D., JESUS, A. D. S., & CAVALCANTE, T.  Expansão da área de ocorrência do lobo-guará, Chrysocyon brachyurus (Carnivora, Canidae) no bioma Amazônico. Oecologia Australis, v. 24, n. 4, p. 928-937, 2020.

  • WHITEMAN, C. W., MATUSHIMA, E. R., CONFALONIERI, U. E. C., PALHA, M. D. D. C., DA SILVA, A. D. S. L., & MONTEIRO, V. C.  Human and domestic animal populations as a potential threat to wild carnivore conservation in a fragmented landscape from the Eastern Brazilian Amazon. Biological Conservation, v. 138, n. 1-2, p. 290-296, 2007.


 
 
 

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