No decorrer dos anos, a atitude exploratória humana a ambientes naturais tem intensificado, com o aumento do desmatamento, exploração de animais silvestres, tanto para consumo de carne e subprodutos, como para a criação como pets, crescimento das queimadas e muitas outras ações. Essas atitudes acabam por permitir um elevado contato entre o homem e os animais, visto que estes, por fim, adentram os ambientes urbanos à procura de abrigo, alimentação ou utilizando como rota de fuga. A pressão nesta inter-relação aumenta a possibilidade de um evento denominado spillover, em português, transbordamento. De forma prática, esse termo se refere ao rompimento de barreiras entre espécies hospedeiras que o agente etiológico viral promove, se adaptando e sendo passível de causar doença nesse novo hospedeiro. Esse fenômeno depende de muitos fatores e pode acontecer diretamente de um hospedeiro reservatório para um receptor ou passar primariamente para outro hospedeiro, denominado de intermediário, antes de atingir o receptor final. As epidemias acontecem em determinados períodos da história, como a Peste Negra causada pela bactéria Yersinia pestis e transmitidas dos roedores para os humanos pelas pulgas presentes no animal reservatório. Essa doença dizimou entre 30 a 50% da população Européia no século XIV, entre 1347 e 1351. Além dessa doença, muitas outras de origem zoonótica foram surgindo, como HIV, ebola, raiva, H1N1, leptospirose, tuberculose, febre amarela e, a mais atual, COVID-19. A COVID-19 ainda não tem uma origem bem estabelecida, apenas hipóteses que necessitam de mais avaliação. O que se sabe até o momento é que, provavelmente, o SARS-CoV-2, vírus causador dessa doença que vem dizimando as populações ao redor do mundo, teve como provável origem o coronavírus presentes em morcegos, com uma similaridade genômica de 92,6%. Alguns cientistas apoiam que há um hospedeiro intermediário, visto que os pangolins, animais altamente explorados na Ásia, possuíam coronavírus 90,1% similar ao SARS-CoV-2. Porém, outros cientistas descartam esses animais como intermediários, visto que não foram encontradas epizootias nos animais pesquisados, bem como acreditam que essa similaridade não é suficiente para identificá-lo como transmissor direto. Além da suspeita da Organização Mundial de Saúde, de que os Wet markets chineses (comercializam além de produtos de origem animal, como porco, frango, peixe e frutos do mar, animais exóticos vivos) podem ter sido o marco zero na epidemiologia da COVID-19, a descoberta da permanência do vírus em produtos congelados importados, sugerem que o vírus pode permanecer vivo e que ele pode ter sido introduzido em Wuhan por meio de carne importada de fazendas de animais selvagens localizadas em outras províncias da China. Independente da origem ser nos mercados ou nas fazendas chinesas, de morcegos, de pangolins ou de ambos, o ponto em comum é a interação entre animais e o homem, principalmente no que se correlaciona com a vida selvagem. Essa relação não só indica a preocupação de que dessas interações possam emergir doenças zoonóticas, que correspondem a mais de 60% de todas as doenças infecciosas humanas e 75% das emergentes, como, também, possam emergir doenças zooantropozoonóticas, ou seja, de origem humana que são transmitidas aos animais, como a herpes simplex (causada por Herpesvirus simplex tipo 1 – HPV-1) em primatas não humanos, e a probabilidade dessa transmissão pelo SARS-COV-2.
É urgente que a sociedade mude seus hábitos, diminuindo a mudança na cobertura do solo, como a substituição de florestas por pasto e ambientes urbanos, e outros impactos, que aumentam a possibilidade de contato homem-animal e que exercem pressão natural sobre agentes etiológicos com potencial patogênico. Analisando o histórico das doenças ao longo dos anos, é possível perceber que essas ações antrópicas são preponderantes no surgimento de epidemias, de modo que, o poder de mudança está nas mãos humanas. Aplicar um desenvolvimento mais sustentável e a conscientização acerca de fatores, como tráfico de animais silvestres, alimentação de carne animal selvagem, bem como de uma nova percepção dos hábitos de consumo, podem ser um pontapé inicial para um bem comum.
REFERÊNCIAS
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