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Bluetongue Virus e a Interação entre fauna silvestre e doméstica

Foto do escritor: Gustavo Gomes da Luz PereiraGustavo Gomes da Luz Pereira



O Vírus da Língua Azul (BTV – Bluetongue virus) pertence ao filo Duplornaviricota, classe Resentoviricetes, ordem Reovirales, família Sedoreoviridae e gênero Orbivírus. É o agente causador da “Doença da língua azul”. Esta doença é uma arbovirose, transmitida por dípteros hematófagos do gênero Culicoides (mosquito-pólvora), que afeta ruminantes. A doença causa impactos significativos para a saúde animal, economia e conservação, sendo uma  doença de notificação obrigatória pela Organização Mundial de Saúde Animal (WOAH). 


O BTV circula naturalmente em ambientes silvestres, no qual bovídeos e cervídeos atuam como reservatórios. Devido a natureza do seu vetor (Culicoides), regiões úmidas e quentes favorecem a disseminação viral durante períodos sazonais. Em condições normais, os ruminantes selvagens tendem a apresentar formas menos severas da doença, contribuindo para a manutenção do vírus no ecossistema . Contudo, surtos esporádicos podem causar mortalidade significativa, especialmente em populações de ruminantes vulneráveis, seja por pressões ambientais ou genéticas. 


No entanto, com a crescente exploração de ambientes naturais, a interação entre fauna silvestre e animais de produção intensificaram o fenômeno de spillover, ou seja, a transmissão de patógenos de espécies domésticas para espécies selvagens. Com o aumento da densidade de gado e a fragmentação de habitats, bovídeos e cervídeos selvagens são expostos a variantes do BTV, muitas vezes adaptadas aos ruminantes domésticos, o que pode resultar em cepas de maior patogenicidade para esses hospedeiros não habituais. Além disso, esse patógeno ainda pode sofrer spillback, que seria a retransmissão do vírus de espécies silvestres para as domésticas, criando um ciclo de amplificação viral, pelo qual diferentes hospedeiros contribuem para o aumento da diversidade genética do vírus (Lobato et al, 2015). Essa maior variabilidade pode resultar em cepas mais agressivas e surtos mais severos, muitas vezes em espécies imunologicamente despreparadas para as novas variantes e com populações já reduzidas, levando a declínios populacionais significativos, colocando em risco populações inteiras.


Um exemplo relativamente recente e bem documentado é o caso da saiga (Saiga tatarica), uma espécie emblemática das estepes da Ásia Central, que já enfrentava pressões significativas devido à caça, perda de habitat e mudanças climáticas. No Cazaquistão, em 2015, a doença da língua azul junto da doença epizoótica hemorrágica (EHDV) foram fatores predisponentes de imunossupressão nas populações silvestres desta espécie (Koch, 2018). A imunodepressão grave causada pelos agentes virais culminou em alta mortalidade na população de saigas por conta de infecções secundárias. Diversos agentes bacterianos levaram grupos inteiros de saiga a óbito por sepse, com registro de mais de 200.000 indivíduos mortos no período de três semanas. A saiga, passou a ser classificada como uma espécie criticamente ameaçada na época (Koch, 2018). A origem do surto foi associada a interações com rebanhos de ruminantes domésticos, infectados por BTV e EHDV na região.


As principais lesões causadas pelo vírus da língua azul são edemas e hemorragias, resultantes do processo inflamatório e de dano vascular. A destruição endotelial causada por esses processos pode levar à trombose e isquemia, acarretando em cianose e necrose de tecidos moles, principalmente a língua (origem do nome da doença), mucosa oral e coroa dos cascos (Pini, 1976). Nos ruminantes domésticos, o BTV manifesta-se com sintomatologia de febre, lesões orais, dificuldade respiratória, edemas e claudicação. Os impactos econômicos incluem: perdas diretas por mortalidade e redução na produtividade de carne e lã e restrição no comércio internacional devido às barreiras sanitárias (Konrad et al, 2003). Em ruminantes selvagens, a patogenia segue um curso semelhante ao observado em animais domésticos, mas pode variar em gravidade dependendo da espécie: cervídeos e antílopes, por exemplo, tendem a desenvolver sintomatologia hemorrágica fatal (Favero, 2013).


Desta forma, o BTV ilustra como doenças emergentes conectam saúde animal, conservação e economia. Enfrentar os desafios impostos por este tipo de doença exige estratégias integradas, como controle de vetores, monitoramento epidemiológico, vacinação direcionada e a redução do contato entre fauna doméstica e silvestre. Soluções colaborativas são fundamentais para proteger a biodiversidade e a sustentabilidade econômica, pois a perda de espécies-chave, nesse caso, de ruminantes selvagens, desestabiliza a saúde e o equilíbrio de ecossistemas inteiros, comprometendo serviços ambientais essenciais.


Autor: Gustavo Gomes da Luz Pereira - Diretor de Linguagens e Acessibilidade do GEAS Brasil

Revisão: Iago Junqueira - The Wild Place

Painel Selvagem de Dezembro/2025



Referências:

  • KOCH, R. A. et al. Saigas on the brink: Multidisciplinary analysis of the factors influencing mass mortality events. Science Advances, v. 4, n. 1, p. eaao2314, 2018. DOI: 10.1126/sciadv.aao2314.

  • RIVERA, N. A. et al. Bluetongue and Epizootic Hemorrhagic Disease in the United States of America at the Wildlife–Livestock Interface. Pathogens, v. 10, p. 915, 2021. DOI: 10.3390/pathogens10080915.

  • DIDKOWSKA, A. et al. A serological survey of pathogens associated with the respiratory and digestive system in the Polish European bison (Bison bonasus) population in 2017–2022. BMC Veterinary Research, v. 19, p. 74, 2023. DOI: 10.1186/s12917-023-03627-y.

  • FAVERO, C. M. et al. Epizootic Hemorrhagic Disease in Brocket Deer, Brazil. Emerging Infectious Diseases, v. 19, n. 2, p. 346-348, fev. 2013. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3559040/. Acesso em: [data de acesso].

  • PINI, A. Study on the pathogenesis of bluetongue: replication of the virus in the organs of infected sheep. Onderstepoort Journal of Veterinary Research, v. 43, p. 159-164, 1976.

  • Konrad P.A., Rodrigues R.O., Chagas A.C.P., Paz G.F. & Leite R.C. 2003. Antibodies against the blue tongue virus in dairy cattle in the state of Minas Gerais, Brazil and associations with reproductive problems. Revta Fac. Zootec. Vet. Agron., Uruguaiana, 10:42-51.

  • Lobato Z.I.P., Guedes M.I.M.C. & Matos A.C.D. 2015. Bluetongue and other orbiviruses in South America: gaps and challenges. Veterinaria Italiana 51(4):253-262.

 
 
 

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