A cinomose é uma doença infecciosa causada por um RNA vírus, chamado Vírus da cinomose Canina, pertencente à família Paramyxoviridae, gênero Morbilovírus, na qual suas espécies causam diversas infecções e em hospedeiros diversos, incluindo a varíola humana.
No que tange à cinomose, vale ressaltar a gama de animais susceptíveis que inclui todas as espécies de canídeos (35), de procionídeos (14), de mustelídeos (59) e de felídeos (49). Apesar do alto número de espécies susceptíveis, com o passar dos anos novas espécies são identificadas, demonstrando a alta capacidade de adaptação desse patógeno e o risco que essa característica traz para a vida silvestre.
(Martinez-Gutierrez; Ruiz-Saenz, 2016; Rendon-Marin et al., 2020)
Historicamente, a agressividade da doença em animais silvestres foi relatada desde 1985, com a quase extinção do furão-do-pé-preto na América do Norte. Logo após, em 1988, relatou-se a mortalidade alarmante de baleias no noroeste Europeu. Na década de 90, o cachorro selvagem africano, conhecido como Mabeco, foi extinto na região do Serengeti-Mara e quase extintos na Botswana e Tanzânia. Em 1994, um terço da população de leões (mil animais), no parque nacional do Serengeti e Reserva Nacional Masai-Mara, morreram devido à infecção por cinomose. Em 2000, dez mil baleias no Mar Cáspio vieram à óbito. De 2013 a 2014, 15 grandes felinos, dentre leões e tigres, morreram em um Santuário no Texas, o North Texas Animal Sanctuary. Nesse mesmo período, 5 de 6 Pandas infectados tiveram o mesmo fim no Shaanxi Rare Wild Animals Rescue and Breeding Research Center.
O surgimento da doença em animais silvestres ocorre devido ao spill-over, situação epidemiológica na qual um agente etiológico adaptado a um hospedeiro X (hospedeiro original) infecta um hospedeiro Y adaptando-se a esse novo hospedeiro. O cão doméstico é o principal carreador dessa doença, sendo a presença deles em áreas de conservação e próximos à locais que possuam animais selvagens em cativeiro, como em zoológicos e mantenedouros de fauna, um risco à biodiversidade. Nos Estados Unidos, além dos cães domésticos, os guaxinins são os prováveis reservatórios, demonstrando outro fator predisponente, a perda de habitat e aproximação de animais selvagens à área urbana em busca de alimento.
Num estudo realizado no Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivenhema, no MS, foi testado a soropositividade de animais domésticos em zonas rurais, sendo todos os não vacinados soropositivos. Além disso, testaram as onças-pintadas da região e 40% delas apresentavam anticorpos anti-cdv, demonstrando a provável transmissão. Com relação aos animais de cativeiro, 90% dos carnívoros do Zoológico da Universidade Federal de Mato grosso eram soropositivos. O que foi observado pelo pesquisador era que o zoológico era rodeado de bairros residenciais e que os cães errantes, bem como proprietários com seus cães adentravam no interior do mesmo. Já em Ilha Grande, observou-se a presença de cães, inclusive cadelas lactantes, em condições selvagens que poderiam ser possíveis transmissoras do vírus da cinomose.
Todas as pesquisas até agora demonstram que, ao longo dos anos, houve mudança na interação patógeno-hospedeiro, devido à ação antrópica, como a expansão das cidades e fronteiras agropecuárias, fragmentação dos habitats naturais, poluição e o abandono de animais domésticos. Todas essas alterações permitiram a maior interação entre as espécies domésticas e selvagens, ou pela proximidade humana ao ambiente selvagem, ou pela aproximação de animais selvagens aos centros urbanos, exercendo uma pressão na seleção natural de patógenos, propiciando, desse modo, adaptação deles em novas espécies.
Essas novas interações também estão relacionadas ao surgimento de zoonoses. Atualmente, já existem estudos que acreditam que há possibilidade de infecção pelo vírus da cinomose em humanos, haja visto, aos novos relatos de contaminação de primatas não humanos. Será que a atenção por parte das instituições governamentais e pela sociedade acerca desse patógeno nas populações selvagens se dará após grandes novos surtos ocasionarem altíssimas perdas na biodiversidade ou quando surgir uma epidemia humana? A ação por parte de todos é urgente!
Sugiro a leitura do artigo:
RENDON-MARIN, Santiago et al. Canine Distemper Virus (CDV) Transit Through the Americas: Need to Assess the Impact of CDV Infection on Species Conservation. Frontiers in Microbiology, v. 11, 2020.
REFERÊNCIAS
MONTEIRO, Maria Vivina Barros et al. Cinomose canina nos animais domésticos e silvestres. Revista de Ciências Agrárias/Amazonian Journal of Agricultural and Environmental Sciences, v. 53, n. 2, p. 216-223, 2011.
REGO, AAM da S. et al. Cinomose em canídeos e mustelídeos silvestres brasileiros: relato de caso. Braz. j. vet. res. anim. sci, v. 34, n. 3, p. 156-8, 1997.
TAQUES, ISIS INDAIARA GONÇALVES GRANJEIRO et al. DETECÇÃO DE ANTICORPOS CONTRA O VÍRUS DA CINOMOSE EM CANÍDEOS SELVAGENS CATIVOS NO ESTADO DE MATO GROSSO.
CATÃO-DIAS, José Luiz. Doenças e seus impactos sobre a biodiversidade. Ciência e Cultura, v. 55, n. 3, p. 32-34, 2003.
MILLER, R. Eric; FOWLER, Murray E. (Ed.). Fowler's Zoo and Wild Animal Medicine, Volume 8-E-Book. Elsevier Health Sciences, 2014.
ALMEIDA, J. C. et al. Ocorrência de patógenos de interesse em saúde única em canídeos silvestres de cativeiro e de vida livre na região nordeste do Brasil. 2017.
GASPARI, Mariana Malzoni Furtado. Estudo epidemiológico de patógenos circulantes nas populações de onça-pintada e animais domésticos em áreas preservadas de três biomas brasileiros: Cerrado, Pantanal e Amazônia. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
SIROIS, Margi. Laboratory Animal and Exotic Pet Medicine-E-Book: Principles and Procedures. Elsevier Health Sciences, 2015.
JORGE, Rodrigo Silva Pinto et al. Ocorrência de patógenos em carnívoros selvagens brasileiros e suas implicações para a conservação e saúde pública. 2010.
https://www.anda.jor.br/2013/06/tigres-estao-contraindo-cinomose-de-caes-domesticos-dizem-especialistas/
POZZA, Michel. Detecção e análise molecular do vírus da cinomose canina. 2005.
MACLACHLAN, N. J.; DUBOVI, E. J. Paramyxoviridae and pneumoviridae. Fenner’s Veterinary Virology; Elsevier: New York, NY, USA, p. 327-356, 2017.
Martinez-Gutierrez, M., & Ruiz-Saenz, J. (2016). Diversity of susceptible hosts in canine distemper virus infection: a systematic review and data synthesis. BMC Veterinary Research, 12(1). doi:10.1186/s12917-016-0702-z
WECKWORTH, Julie K. et al. Cross‐species transmission and evolutionary dynamics of canine distemper virus during a spillover in African lions of Serengeti National Park. Molecular Ecology, 2020.
DORJI, Tshering et al. Seroprevalence and risk factors of canine distemper virus in the pet and stray dogs in Haa, western Bhutan. BMC Veterinary Research, v. 16, p. 1-6, 2020.
DE ROMA, Talita Nazareth et al. Efeitos da presença de Canis lupus familiaris L.(carnivora: canidae)(cão) em uma reserva biológica municipal do bioma mata atlântica no sul de Minas Gerais, Brasil. Holos Environment, v. 20, n. 3, p. 405-422, 2020.
ANIS, Eman et al. Genetic characteristics of canine distemper viruses circulating in wildlife in the united states. Journal of Zoo and Wildlife Medicine, v. 50, n. 4, p. 790-797, 2020.
Comments