Um modelo vivo de eletrofisiologia
- Giovanna Luiza
- há 2 dias
- 4 min de leitura

A enguia elétrica, Electrophorus electricus, é o principal gerador de bioeletricidade do reino animal, com capacidade para gerar um potencial elétrico de até 600 volts. Sua anatomia e fisiologia contam com órgãos que se desenvolvem a partir do músculo esquelético e preservam grande parte das propriedades bioquímicas e morfológicas do sarcolema muscular que é definida como uma membrana plasmática da fibra muscular, revestindo-as. Essa membrana possui um importante papel na condução do impulso elétrico, que leva à contração muscular. Além disso, esses animais possuem eletrócitos (eletroplastos), células especializadas responsáveis por gerar descargas elétricas. Os eletroplastos desses teleósteos evoluíram com quantidades excessivas de proteínas de membrana específicas, promotores de uma polarização que permite que essas células produzam potenciais transcelulares que, quando somados em série, resultam em uma descarga elétrica potente ao longo de todo o corpo do animal. A enguia elétrica usa essa produção voluntária de eletricidade como um mecanismo eficaz para defender-se de predadores e caçar suas presas (Gotter et al., 1998).
Ao longo da história, as espécies de Electrophorus electricus contribuíram para o entendimento da eletricidade. Em 1775, John Walsh usou a enguia elétrica como fonte de potencial elétrico, comparável a uma bateria de alta potência. Nesse contexto, foram realizados diversos experimentos, dos quais uma investigação se destacou por envolver dez pessoas estabelecendo contato físico em um círculo, onde a primeira e a última tocavam respectivamente a cabeça e a cauda da enguia — todos recebiam um leve choque elétrico. Assim, após inúmeros estudos, determinou-se que o tecido elétrico oferece um modelo apropriado para o estudo de bioquímica e eletrofisiologia de membranas excitáveis, devido à quantidade de proteínas de membrana homólogas a outros tecidos excitáveis, além de células contendo grandes quantidades de proteínas ATPases. Concluiu-se então que o tecido elétrico de Electrophorus electricus é especializado exclusivamente para a excitabilidade de membrana (Voss et al., 1974; Gotter et al., 1998).
Devido à sua especialização para gerar um potencial de até 600 volts, os órgãos elétricos prevalecem em cerca de 80% da parte posterior do animal, enquanto as vísceras estão concentradas nos 20% anteriores. Seu trato digestivo muscular se projeta caudalmente e se curva novamente em direção à cavidade oral, terminando no ânus que fica localizado logo atrás da cabeça, anterior às pequenas nadadeiras peitorais. A enguia elétrica também possui uma bexiga natatória que se estende ao longo do comprimento do animal, entre o órgão elétrico principal e a medula espinhal (Gotter et al., 1998).
O sistema nervoso central da enguia elétrica inclui um pequeno encéfalo condizente com a classe de teleósteos, além da medula espinhal que se estende ao longo de toda a cauda. Esses animais possuem um núcleo de controle central, localizado no bulbo da medula oblonga, e é responsável pela coordenação da descarga elétrica. Neurônios eferentes centrais se estendem caudalmente pela medula espinhal e realizam sinapses com neurônios motores, que ocupam a região dorsomedial ao longo do comprimento da medula espinhal. Dessa forma, axônios de alguns desses neurônios eletromotores irradiam-se para os órgãos elétricos e inervam eletrócitos (Oliveira, 1961).
Esses indivíduos possuem três órgãos elétricos bem definidos, sendo eles: um órgão elétrico principal, que gera descargas de alta voltagem, enquanto os órgãos de Hunter e de Sachs geram descargas de baixa voltagem e acredita-se que estejam envolvidos na eletrolocalização (Bennett, 1971). O principal deles se estende da região peritoneal ao longo da cauda do animal, onde dá origem ao órgão de Sachs, o qual ocupa a porção restante da parte caudal, e apresenta morfologia mais translúcida devido à sua menor quantidade de eletrócitos densamente empacotados. O órgão de Hunter está localizado adjacente aos outros órgãos elétricos, e dentre as três, é a menor víscera. O órgão de Hunter é visualmente separado do órgão principal por dois conjuntos de feixes de eletrócitos, correndo ao longo da borda inferior do órgão principal. Para gerar uma descarga elétrica sincronizada, os eletroplastos individuais dentro de cada órgão elétrico devem ser excitados simultaneamente. Essa estimulação sincronizada é obtida através do retardo na ativação de regiões proximais dos órgãos elétricos, permitindo que os eletrócitos sejam estimulados ao mesmo tempo que os das regiões mais distais (Keynes, 1961; Gotter et al., 1998).
Dessa forma, conclui-se que os exemplares de Electrophorus electricus representam um modelo biológico vivo para estudos em bioeletricidade e eletrofisiologia. Esses peixes teleósteos possuem uma anatomia adaptada que associada à funcionalidade dos órgãos elétricos, bem como à coordenação neuromuscular das descargas, evidencia a complexidade dos mecanismos de defesa, predação e até forrageamento desses animais. Além disso, sua contribuição histórica e científica reforça a importância dessa espécie no âmbito das pesquisas sobre membranas excitáveis e sistemas eletrogênicos, capazes de gerar potenciais elétricos através de processos fisiológicos.

FIG. 1. Anatomia da enguia elétrica. (A) Diagrama ilustrando a organização anatômica dos órgãos elétricos. (B) Uma seção através da porção média da enguia, desenhada de forma que a superfície anterior esteja voltada para a direita. (C) Colunas de eletrócitos se estendem ao longo do órgão elétrico principal. Neste painel, a superfície posterior de um eletrócito é mostrada exposta e inervada por numerosos axônios eletromotores (não mostrados). As linhas pretas espessas indicam septos de isolamento que separam colunas adjacentes de eletrócitos. A sombra azul clara representa o interior dos eletrócitos expostos no corte transversal. Fonte: Gotter et al., 1998.
Autora: Giovanna Luiza – Diretora de Associação do GEAS Brasil.
Painel Selvagem de Abril/2025.
Referências Bibliográficas:
GOTTER, A. L.; KAETZEL, M. A.; DEDMAN, J. R. Electrophorus electricus as a model system for the study of membrane excitability. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, Ribeirão Preto, v. 31, n. 3, p. 325–338, Mar. 1998. https://doi.org/10.1590/S0100-879X1998000300001.
BENNETT, M. V. L. Electric organs. In: HOAR, W. S.; RANDALL, D. J. (ed.). Fish Physiology. New York: Academic Press, 1971. v. 5, p. 347–491.
VOSS, H. G.; ASHANI, Y.; WILSON, I. B. A covalent affinity technique for the purification of all forms of acetylcholinesterase. Methods in Enzymology, v. 34, p. 581–591, 1974.
KEYNES, R. D. The development of the electric organ in Electrophorus electricus. In: CHAGAS, C.; PAES DE CARVALHO, A. (eds.). Bioelectrogenesis. New York: Elsevier Science, 1961. p. 14–19.
OLIVEIRA CASTRO, G. Morphological data on the brain of Electrophorus electricus. In: CHAGAS, C.; PAES DE CARVALHO, A. (eds.). Bioelectrogenesis. New York: Elsevier Science, 1961. p. 171–184.
Comments